Por Antonio Lassance, em seu blog
Em 2002, Lula foi ao hospital tirá-lo da cama, em uma das inúmeras
vezes em que o “chininha”, como gostava de chamá-lo, seria derrubado,
mas não vencido, por um câncer agressivo. Havia perdido muitos de seus
quilos e parte razoável de seu intestino. A ocasião talvez não fosse
apropriada, mas o convite não podia esperar. Lula o queria
coordenador-adjunto da transição de governo e, depois, ministro.
"Luiz Gushiken partiu como viveu: com coragem". (Dilma Rousseff, presidente da República).
"Nunca esqueceremos a contribuição generosa de Gushiken para a
construção desse Brasil que sonhamos juntos e que sem ele não seria
possível" (Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente da República).
“Quem é esse cara que foi preso por minha causa e eu nem conheço?”
Foi-se embora Luiz Gushiken, petista, sindicalista, ex-deputado federal e ex-ministro do primeiro governo Lula (2003 a 2006).
Lula teve a primeira notícia sobre Gushiken quando este havia sido
preso, em plena ditadura militar, organizando um fundo de greve de
solidariedade dos bancários para os metalúrgicos. “Quem é esse cara que
foi preso por minha causa e eu nem conheço?”
Gushiken foi presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo,
fundador da CUT, em 1983, e um dos idealizadores do Departamento
Nacional dos Bancários da CUT, que deu origem à Confederação Nacional
dos Bancários (CNB-CUT).
Fundador do PT, em 1980, foi membro de seu Diretório Nacional,
Presidente do Partido (de 1988 a 1990) e coordenador da heroica campanha
de 1989, a do Lula-lá.
No PT, foi também Secretário Sindical Nacional e Vice-Presidente
Nacional. Deputado constituinte e reeleito por mais dois mandatos, em
1998 abriu mão de disputar eleições.
O estrategista que gostava de Muhhammad Ali
Em 2002, Lula foi ao hospital tirá-lo da cama, em uma das inúmeras
vezes em que o “chininha”, como gostava de chamá-lo, seria derrubado,
mas não vencido, por um câncer agressivo. Havia perdido muitos de seus
quilos e parte razoável de seu intestino. A ocasião talvez não fosse
apropriada, mas o convite não podia esperar. Lula o queria
coordenador-adjunto da transição de governo e, depois, ministro.
Gushiken gostava de tudo que dissesse respeito, direta ou
indiretamente, a conhecimento estratégico. Era aficionado por estudar
métodos e técnicas de planejamento; lia sobre a arte da guerra e grandes
batalhas. Gostava de lutas de boxe e nelas via também estratégia. A
luta entre Muhammad Ali e George Foreman, em 1974, a “jungle fight”
montada no Zaire de Mobuto e transmitida para o mundo, era por ele
considerada a luta do século. Muito frequentemente, lhe servia como
analogia.
A luta mostrava como alguém em desvantagem podia vencer um oponente
mais forte, se usasse a estratégia correta. Foreman era, naquele
momento, um oponente superior a Muhammad Ali. A estratégia de Ali
parecia estranha e perigosa: apanhar, segurar o tranco até o último
round e cansar o adversário. Assim fez, esperando o momento exato até
que seu rival, exausto, estivesse no ponto para ser derrotado. Muhammad
Ali reconquistou seu cinturão quando a maioria o julgava acabado.
O samurai na comunicação de governo
Mais que uma analogia, Gushiken fez uso dessa estratégia inúmeras
vezes. Por exemplo, quando precisou dar um “chega pra lá” em Duda
Mendonça, marqueteiro da campanha de 2002 e um dos publicitários
oficiais do governo, a partir de 2003. Gostemos ou não de Duda Mendonça,
ninguém discute que ele é um dos melhores naquilo que faz: marketing
político. Por sua vez, o conhecimento da área de comunicação não era um
dos pontos fortes de Gushiken.
Duda circulava pela Esplanada e conversava diretamente com ministros e
com o próprio presidente sobre publicidade, campanhas e marketing.
Eminência parda da área, agia como um ministro sem pasta. Percebendo a
investida, Gushiken tomou uma atitude defensiva. Deu uma entrevista na
qual dizia que Duda seria transformado em uma espécie de consultor para
cuidar da imagem do governo e seus programas. Todos à volta de Gushiken
imaginavam que ele estava entregando os pontos.
No dia seguinte, as manchetes dos jornais apelidavam Duda de “o
ministro da propaganda” de Lula. Exposto, Duda acusou o golpe e disse
que gostava de fazer publicidade, e não de ter que ficar dando
explicações à imprensa todo dia. Procurou Gushiken e disse: “o ministro é
você, e mais ninguém”. O publicitário nunca mais discutiu nada sobre a
publicidade sem antes passar pela Secom. Promovendo a figura de Duda,
Gushiken obrigou-o, diante do estigma de ministro da propaganda e do
holofote negativo, a jogar a toalha.
Na verdade, Gushiken nunca quis ser ministro da Secretaria de
Comunicação. Queria uma Secretaria de Assuntos Estratégicos, que já não
mais existia - havia acabado durante o segundo mandato de FHC. Mas
Lula insistia na ideia da comunicação. Precisava de um ministro de sua
absoluta confiança para cuidar da estratégia de centralização da
comunicação de governo, como forma de imprimir suas marcas. A solução
salomônica foi juntar as duas coisas: o que Lula queria e o que Gushiken
pedia. Assim nasceu a Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica da
Presidência da República.
Reviravoltas na comunicação
A comunicação de governo sofreu uma reviravolta sob o comando do
“chininha”, do “Gushi”, do “samurai” - para citar alguns dos vários
apelidos pelos quais Gushiken era referido.
Antes do governo Lula, havia ministérios, como o da Educação, de
Paulo Renato Souza; o da Saúde, de José Serra; e o do Desenvolvimento
Agrário, de Raul Jungmann, que suplantavam em muito a estrutura de
comunicação da própria Presidência da República. A partir de Gushiken,
os ministérios passaram a fazer exclusivamente a dita publicidade de
utilidade pública. A publicidade institucional de governo estaria a
cargo só da Presidência.
O Governo Federal passou a ter um negociador único (a Secom) da verba
publicitária, e a relação com os veículos de comunicação inverteu-se.
Alguns veículos eram privilegiados na distribuição de verbas
publicitárias sem qualquer relação com a audiência ou com o público-alvo
das campanhas.
Uma dessas campanhas, para o Programa Nacional da Agricultura
Familiar (Pronaf), gerou outra reviravolta. Quando veio o plano de
mídia, com a lista dos veículos, o cronograma de veiculação das peças
publicitárias e os valores a serem gastos, não havia veículos do
interior. Ou seja, a publicidade de um programa destinado a agricultores
seria feita, em sua maior parte, nas capitais, e não em áreas rurais.
O ministro devolveu a planilha, pediu mais rádio e mais jornais do
interior. As agências voltaram em polvorosa. Como fazer propaganda em
veículos do interior? Ninguém sabe quem eles são e que audiência têm. A
resposta de Gushiken foi uma espécie de “se virem e descubram”.
A teimosia do dirigente acabou gerando o primeiro processo de
regionalização da verba publicitária. A própria equipe da Secom começou a
cadastrar e a incentivar o processo de formação ou fortalecimento das
associações de veículos do interior, que se organizaram para contratar
mecanismos para a aferição de audiência para que pudessem ser
remunerados conforme sua capacidade de difusão da informação.
Pela primeira vez se discutiu claramente que a publicidade deveria
considerar a audiência (o que não ocorria antes), mas não se resumir a
ela. A escolha de veículos também deveria ser adequada aos segmentos de
público específicos aos quais a mensagem das campanhas se destinasse. É
algo que hoje mereceria ser feito em relação à internet e ainda não o
foi.
Cartas críticas e puxões de orelha nos ministros
Gushiken também levou para a Secom, a pedido de Lula, o jornalista
Bernardo Kucinski, que desde a campanha eleitoral produzia uma análise
das notícias publicadas pela imprensa. Kucinski passou a produzir as
Cartas Críticas durante as madrugadas, e o documento seguia bem cedo
para o Palácio da Alvorada. As cartas eram críticas em relação ao
governo e também quanto à distorção de informações de parte da imprensa.
Lula sistematicamente usava a Carta Crítica como um roteiro para seus
puxões de orelha em ministros. Durante suas caminhadas matinais, o
presidente lia o documento e disparava ligações para cobrar providências
de seus auxiliares. Um deles reclamou com o ministro da Secom: “O
Bernardo tem que parar com isso. Todo dia o presidente me liga pra
reclamar”. Gushiken respondeu: “mas é exatamente pra isso que chamamos o
Bernardo”.
Outra novidade foi a criação de um boletim chamado Em Questão, uma
espécie de Voz do Brasil, só que impresso. O Em Questão era o principal
instrumento do governo para divulgar suas notícias de forma rápida.
Embora tivesse versão impressa, sua maior circulação se dava por email. A
imprensa o apelidou de Pravda (em russo, “a verdade”), nome do famoso
jornal da antiga União Soviética. A fama disseminada acabou ajudando a
divulgar sua existência e a chamar a atenção para suas notícias. Ao
final de 2006, o Em Questão chegava impresso ou por email a meio milhão
de pessoas.
Ainda em 2003, foi criado o Café com o presidente, que trazia de
volta ao rádio o recado semanal do presidente da República. O programa
existe até hoje - agora, Café com a presidenta.
Contra o complexo de vira-latas, "o melhor do Brasil é o brasileiro"
Em 2004, Gushiken convidou as principais agências de publicidade do
setor privado para uma ação conjunta, em parceria com as agências que
serviam ao governo. Os publicitários foram incentivados a pensar peças
de uma grande campanha para reforçar a autoestima dos brasileiros. Era a
época do combate sem tréguas ao “complexo de vira-latas”, expressão de
Nélson Rodrigues que Lula pegou emprestado para criticar os que não
confiavam no Brasil e falavam mal do país no exterior.
O esforço em parceria deu origem à campanha “O melhor do Brasil é o
Brasileiro”, feita toda sobre exemplos de superação e valores como a
honestidade. O slogan "sou brasileiro e não desisto nunca" virou um
bordão.
As campanhas de autoestima, a regionalização dos gastos de
publicidade, a criação do Fórum de Assessores de Comunicação, do Em
Questão e do Café com o presidente, o fortalecimento da Radiobrás, da TV
e das rádios educativas foram alguns dos legados de Gushiken no comando
da Secom. Muitos desses legados foram abandonados por uma comunicação
de governo que aos poucos foi perdendo peso político e hoje é destituída
de qualquer sentido estratégico.
O inferno abre suas portas
Em 2005, o escândalo desencadeado pelas acusações de Roberto
Jefferson, presidente do PTB, levantou suspeitas sobre a comunicação do
governo. O pivô das acusações era o empresário Marcos Valério, um dos
sócios da agência DNA Propaganda. Valério ainda hoje é chamado de
publicitário, sem ser. Embora fosse sócio de uma agência publicitária,
seu verdadeiro negócio não era esse, e sim o sistema financeiro. Como
disse a própria presidente do Banco Rural, em depoimento à CPI e à
Justiça, Valério atuava como lobista em favor de bancos. O dinheiro do
que acabou conhecido como “mensalão”, carimbo criado por Jefferson, era
pago por bancos médios (como o Rural) ao lobista com a expectativa de
terem acesso a serviços que, até então, eram restritos aos grandes
bancos.
Gushiken sabia que as acusações contra ele tinham como objetivo
atingir o presidente Lula e quebrar as pernas da comunicação de governo.
Mas suspeitava também que muitas das ilações eram patrocinadas, de
alguma forma, por seu arqui-inimigo, Daniel Dantas.
Dantas foi o mago das finanças do processo de privatização durante o
governo FHC. Canalizou o interesse de grandes fundos de investimento
estrangeiros e tinha peso sobre a decisão de vários fundos de pensão de
trabalhadores do setor público, que tiveram recursos utilizados
justamente para financiar a privatização de empresas estatais.
Em 2004, eis que a Polícia Federal, na Operação Satiagraha, que
investigava o escândalo da falência da Parmalat, descobriu que Dantas
contratara a Kroll, maior empresa de espionagem do mundo, para espionar,
entre outros, Luiz Gushiken. Na esteira da investigação, foi também
desvendada uma teia de relações de Dantas com o meio jornalístico, com
“profissionais” contratados para falar mal do ministro de Lula.
A PF concluiu que Dantas havia montado uma verdadeira organização
criminosa, que acabou acusada dos crimes de quadrilha, corrupção ativa,
quebra de sigilo constitucional, exploração de prestígio e obtenção
ilegal de documentos confidenciais. O desfecho de tudo é conhecido:
Dantas foi preso e quase imediatamente solto pelo STF, e o único que
passou por dificuldades com o processo foi o delegado da Polícia Federal
que comandou a Satiagraha, Protógenes Queiroz, hoje deputado federal
(PCdoB-SP).
Acusado injustamente, finalmente inocentado
Gushiken, desde o início, manteve-se convicto de que não havia
dinheiro da comunicação no dito mensalão. Dizia que a única maneira de
algum valor substancial da área ir parar nas mãos dos partidos seria se
os veículos estivessem remetendo os recursos de publicidade para
campanhas eleitorais. A quase totalidade do dinheiro da publicidade é
gasto justamente na veiculação de comerciais. Não fazia sentido.
Com essa certeza em mãos, Gushiken foi para uma das comissões
parlamentares de inquérito montadas no Congresso e enfrentou gente como
Eduardo Paes e Gustavo Fruet. Ambos eram estrelas do PSDB no espetáculo
midiático do mensalão e diziam estar enfrentando o governo mais
corrupto de toda a história do Brasil. Paes e Fruet, hoje no PDMB e no
PDT, respectivamente, iriam depois se desculpar pessoalmente com Lula e
pedir de joelhos o apoio às suas campanhas às prefeituras do Rio de
Janeiro e de Curitiba, em 2012.
Acusado injustamente, Gushiken foi inocentado na peça elaborada pelo
procurador-geral da República, no relatório de Joaquim Barbosa e pelo
voto de todos os ministros do Supremo Tribunal Federal. As manchetes do
dia seguinte de forma alguma lhe fizeram justiça. Dizem, ainda hoje,
após sua morte, que ele foi inocentado por “falta de provas”, como se
fosse possível haver provas de algo que não existiu.
Nenhum dos detratores pediu desculpas a Gushiken.
De volta à estratégia
Enquanto vários ministros caíram, ao longo de 2005 e 2006, Gushiken
ficou. Assim que o escândalo do mensalão se instalou, percebeu que o
duro golpe que sofrera lhe abria uma oportunidade: a de convencer Lula
de seu projeto original. O presidente finalmente concordou em deixá-lo
cuidar só de assuntos estratégicos. Surgiu assim o Núcleo de Assuntos
Estratégicos (NAE), separado da Secom. Gushiken pediu para não ter
status de ministro e nem sala reservada no Palácio do Planalto.
De 2003 a 2006, em torno do projeto Brasil 3 Tempos (2007, 2015,
2022), foram feitos estudos sobre biocombustíveis, mudanças climáticas,
nanotecnologia, macroeconomia para o desenvolvimento, educação em tempo
integral, tecnologias sociais, reforma política, desenvolvimento
regional e cenários de longo prazo, entre outros.
Último round
Lula reelegeu-se em 2006 e Gushiken foi convidado a continuar no
governo. Declinou. Queria um pouco de paz e achava que não ajudaria mais
o governo. Ao contrário, seria uma fonte permanente de insinuações e
ilações. Antevia o circo que seria montado em torno da AP 470, que ainda
estava longe de concluir por sua inocência.
Uma de suas últimas batalhas foi travada contra a revista Veja. O
semanário havia publicado informações mentirosas a seu respeito.
Indignado, consultou um advogado, que o desestimulou a ingressar com a
ação, pois, mesmo ele estando com a razão e podendo provar que Veja
havia mentido, o processo seria demorado e o resultado era incerto. A
indenização, se viesse a ser concedida, seria menor que os honorários
advocatícios e pouco valeria para reparar o dano.
Gushiken preferiu discordar do prognóstico e insistiu em entrar com a
ação. O samurai ainda teve tempo de ver a Justiça lhe dar ganho de
causa. A revista foi obrigada a indenizá-lo por danos morais. Espancado
pela Veja ao longo de todo o governo Lula, saiu-se vitorioso no último
de seus rounds.
Poucas semanas depois de ter completado seus 63 anos, reuniu a
família, fez um balanço de sua vida, falou dos desafios do governo Dilma
e do PT, despediu. Já não tomava a medicação, pois ela não mais
produzia efeito, a não ser os negativos. Estava com 35 quilos.
O 13 que o acompanhou por toda a sua vida política selou seu
derradeiro fim. Gushiken morreu na noite do dia 13 de setembro de 2013.
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* Antonio Lassance, doutor em Ciência Política pela Universidade de
Brasília, foi coordenador administrativo da transição de governo, em
2002; chefe de gabinete de Luiz Gushiken, de 2003 a 2005; e
Secretário-Geral do Núcleo de Assuntos Estratégicos, em 2006. É Técnico
de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente
opiniões do instituto. Artigo publicado no blog de Antonio Lassance.
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