Por Saul Leblon, no Portal Carta Maior
Eleito em 2011 para dirigir a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e a Alimentação (FAO), José Graziano da Silva levou ao
plano internacional a experiência de quem no Brasil liderou a agenda da
luta contra a fome dentro do Partido dos Trabalhadores, desde a sua
fundação. Nessa trajetória seria um dos principais responsáveis pela
criação e a implantação inicial do Fome Zero, no primeiro governo Lula,
em 2003.Fome Zero, na verdade, era o nome fantasia de uma
política de segurança alimentar que incluía um amplo leque de medidas e
programas destinados a atacar as manifestações emergenciais e
estruturais da fome e da miséria no país. Apesar dos tropeços
iniciais, sob forte cerco de uma mídia inconsolável com a derrota de
seu eterno candidato, José Serra, grande parte das ações foram e
continuam sendo implantadas no país. Com indiscutível êxito.O
Brasil e Lula tornaram-se referências no combate à fome no mundo.
Graziano venceu uma disputa dificílima pela direção geral da FAO, com
oposição engajada de Hillary Clinton e dos europeus, que tinham
candidato próprio.
A votação maciça dos países em desenvolvimento
e o apoio pesado no continente africano deram-lhe a vitoriosa
responsabilidade de concentrar esforços na montagem de uma ponte
cooperativa entre países africanos e latino-americanos,
Objetivo: discutir e adaptar experiências bem sucedidas de políticas sociais e agrícolas de combate à fome.
Em
seu último relatório sobre o estado da segurança alimentar no mundo ,
divulgado no início deste mês, a FAO mostra que o Brasil tem o que
oferecer.
O país reduziu em 40% o número de famintos entre 1992
e 2013. De 22,8 milhões , o contingente dos que passam fome recuou para
13,6 milhões de pessoas, (6,9% da população contra 15% em 1992).
O segredo do sucesso?
“Ter
transformado a fome em uma questão política e decidido, politicamente,
que ela seria vencida no país. Isso requer um engajamento amplo da
sociedade’, responde Graziano na entrevista exclusiva concedida a Carta
Maior, de Roma. Leia abaixo:
Carta Maior - O mundo
ainda reúne 842 milhões de famintos. Os países pobres e em
desenvolvimento lograram avanços, enquanto os ricos viram aumentar o
contingente de cidadãos às voltas com a fome. Como se deu essa inversão?
Graziano-
Observa-se nos países desenvolvidos uma baixa proporção de subnutrição,
usualmente abaixo dos 5%. É verdade que houve um aumento entre
2005-2007 e 2011-2013, mas é um aumento marginal: pouco mais de duas
milhões de pessoas em todos os países desenvolvidos Ainda assim, isso
mostra que o fortalecimento da proteção social é importante também para
países desenvolvidos, especialmente em épocas de crise.
Uma
mensagem central da edição 2013 do Estado da Insegurança Alimentar no
Mundo é que o crescimento econômico pode elevar renda e reduzir a fome,
mas somente se ele for mantido ao longo do tempo e beneficiar todos os
segmentos da população. Em outras palavras o crescimento econômico pode
tirar as pessoas da pobreza, mas nem sempre isso é suficiente e, às
vezes, leva muito tempo. Por isso, precisamos da proteção social para
assegurar que os mais vulneráveis não fiquem para trás e possam
beneficiar-se e contribuir ao crescimento econômico.
CM- O
Brasil se destaca nesse quadro de avanços. O sr. acredita que as ações
mais emergenciais do Fome Zero já cumpriram o seu papel? O que seria
uma segunda família de politicas sociais capaz de ir além no processo de
combate à desnutrição e à pobreza?
Graziano -
O feito brasileiro não é apenas numérico, ainda que resgatar milhões de
seres humanos enredados na rotina da fome, como se fez no país seja
digno de destaque e faça com que hoje seja possível sonhar com um país
sem miséria. Segundo as estimativas da FAO, entre 1990 e 2012 a
proporção da população com fome caiu de 15 para sete por cento. Ou seja,
já alcançamos a meta do milênio de reduzir pela metade essa proporção.
Há
duas características importantes no caminho que o Brasil escolheu
percorrer. Primeiro, ter transformado a política de segurança alimentar
numa política de Estado, não de governo, constitucionalmente garantida e
que não se confunde com assistencialismo: ela busca garantir um
direito, o direito humano à alimentação. E, segundo, ter decidido atacar
as causas estruturais e as manifestações emergenciais da fome e da
miséria no país.
Essas não são decisões técnicas, são decisões
políticas. Hoje, vários países seguem nessa linha, mas esse não era o
caso quando o Brasil escolheu percorrer esse caminho.
O Brasil,
portanto, num dado momento tomou a decisão de erradicar a fome e criou,
em primeiro lugar, um grande consenso de que isso era prioritário e
possível. O programa Fome Zero, implantado em janeiro de 2003, era
exatamente isso. Era, ao mesmo tempo, uma bandeira de mobilização
política e nome popular de uma política de segurança alimentar. Dotada
de um amplo guarda-chuva de programas e ações, ela foi desenhada,
implantada e monitorada com a participação de um conjunto de atores da
sociedade civil.
O Bolsa Família, que hoje beneficia mais de 50
milhões de brasileiros, é o braço mais visível dessa construção. Mas
desde então ela já previa outros alicerces como a valorização do poder
de compra do salário mínimo; a formalização do mercado de trabalho; o
fomento à agricultura familiar com crédito e assistência técnica; a
expansão e o fortalecimento da alimentação escolar vinculado a compras
do governo junto aos pequenos agricultores.
Importante frisar
também que a luta contra a exclusão sempre contou com o apoio
incondicional da Presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, que
colocaram o tema no centro de sua agenda de governo. Esse compromisso
faz com que toda a estrutura publica brasileira se mobilize contra a
fome e a exclusão, não só ajudando a resgatar pessoas da pobreza, mas
ajudando a que elas continuem a progredir seja através da possibilidade
de aceder a melhores empregos, a um salário mínimo com ganhos reais,
programas de apoio a agricultura familiar, etc.
A montagem e
implantação dessa arquitetura requerem uma progressiva revisão de modelo
de desenvolvimento excludente. A segurança alimentar ergue linhas de
passagem para uma travessia que inverte a visão estratégica sobre o
assunto. A justiça social deixa de ser o ‘efeito colateral’ do acumulo
da riqueza; ela se torna a mola propulsora do crescimento. Quando se
fala que o mercado interno brasileiro redesenhou as fronteiras da
demanda e da produção é disso que se trata. Estamos falando de uma
reordenação histórica dos motores do desenvolvimento. Algo não
desprovido de conflitos, gargalos e contradições. Ou seja, nunca é um
caminho pronto.
CM- A África continua a ser o núcleo
duro da fome no mundo. Como a América Latina pode contribuir com sua
experiência de políticas sociais para reverter a tragédia africana? O
Brasil pode ser essa ponte entre AL e África?
Graziano-
O Brasil pode ser e já vem desempenhando o papel de ponte. Hoje, a
experiência brasileira é uma das principais referências para países que
superar a fome e promover um desenvolvimento sustentável e inclusivo.
Não só há interesse, mas há várias ações já iniciadas para compartilhar
experiências exitosas através da Cooperação Sul-Sul, muitas delas com a
FAO. Mas é importante frisar que não adianta apenas copiar políticas e
programas: elas precisam respeitar e responder às realidades e
necessidades locais.
Também vale destacar o compromisso do
ex-presidente Lula, que tem na luta contra a fome na África uma de suas
principais bandeiras. Em julho, a FAO, o Instituto Lula e a União
Africana apresentaram uma parceria inovadora nesse sentido. O encontro
em Adis Ababa teve uma participação de alto nível e, pela primeira vez,
países africanos fixaram uma meta para erradicação da fome no
continente: 2025.
A América Latina também pode dar uma
contribuição importante no que diz respeito ao desenvolvimento de
técnicas e tecnologias de produção agrícolas adaptadas à realidade
africana e fortalecimento dos sistemas de investigação e extensão rural
africano. A Embrapa tem uma série de tecnologias para o semi-árido que
podem ser adaptadas para África, assim como a técnica do plantio direto
usada pela Argentina.
CM- Recentemente, os governos dos EUA e
Canadá acionaram a OMC questionando os programas brasileiros de
aquisições de produtos da agricultura familiar destinados à alimentação
escolar. A acusação é a de que disfarçariam subsídios aos pequenos
produtores. Qual a avaliação da FAO?
Graziano -
Essa assunto é parte de uma discussão mais ampla que deverá ter lugar
na próxima Conferência Ministerial da OMC, em Bali, em dezembro. Não é
só o Brasil. Existem questionamentos também sobre iniciativas da Índia
no âmbito de segurança alimentar.
A FAO não tem conhecimento
oficial desses fatos. O que se sabe, pelo noticiário, é que os EUA e o
Canadá teriam solicitado informações adicionais sobre o programa
brasileiro de alimentação escolar, que é um dos maiores do mundo,
atendendo a mais de 44 milhões de crianças e adolescentes diariamente.
Entendo
que o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE) fazem parte do conjunto de programas da
chamada “caixa verde” do Acordo Agrícola da Organização Mundial do
Comércio e que foram notificados pelo Brasil à OMC. Ou seja, são medidas
consideradas como não tendo impacto ou tendo um impacto muito pequeno
no comércio internacional e que são permitidos até certo nível de gastos
previamente acordados.
Programas como o PAA e alimentação
escolar são muito valiosos na luta contra a fome. A determinação, por
lei de 2009, de que os governos municipais e estaduais são obrigados a
usar no mínimo 30% do dinheiro federal destinado à alimentação escolar
na compra de produtos da agricultura familiar significa um aporte da
mais de R$ 1 bilhão ano em aquisições junto a pequenos produtores
locais. Algo que ajuda sobremaneira a dinamizar as economias locais de
áreas rurais. Importante lembrar que, em nível mundial, 70% da população
em insegurança alimentar vive no campo.
Programas que investem
na produção e compra de produtos locais são uma alternativa à
dependência de importações de alimentos. Muitos países tem condições de
produzir mais para alimentar sua população. Efetivar esse potencial é
algo estratégico na medida em que reduz r a exposição a episódios de
alta volatilidade como vimos em anos recentes. Ademais, aumentar a renda
no campo, serve como estímulo adicional para que as famílias permaneçam
nas áreas rurais.
Investir nesse tipo de ação requer uma
decisão política ao mesmo tempo simples e divisória: canalizar o poder
de compra do Estado para o elo mais fraco da corrente rural, aquele
formado pela agricultura familiar. A dinâmica dessa engrenagem faz
brilhar a esperança nos olhos de governantes de outras nações quando
tratamos da Cooperação Sul-Sul.
A FAO e o governo brasileiro têm
somado esforços para adaptar o binômio agricultura familiar e
alimentação escolar às condições concretas da regionalidade
latino-americana. Onze países participam atualmente desse mutirão no
âmbito do Programa de Cooperação Internacional Brasil-FAO. Também na
África, o programa brasileiro de aquisição da agricultura familiar
inspira ações similares na Etiópia, Maláui, Moçambique, Níger e Senegal.
Não
creio que seja do interesse de ninguém abortar essa dinâmica
emancipadora, que beneficia quem tem fome e quem pode produzir para
superá-la.
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