Por Altamiro Borges ( Artigo publicado na revista Princípios número 129 - fevereiro e março de 2014)
Em 2013, o debate sobre o poder ditatorial dos meios de comunicação e
sobre a urgência da regulação democrática da mídia ganhou impulso no
mundo inteiro. Até o Reino Unido, chocado com os escândalos de corrupção
e invasão de privacidade do império de Rupert Murdoch, aprovou uma dura
legislação. A Rainha Elizabeth 2ª se tornou, na visão dos barões da
mídia, a nova “chavista” do planeta. Os avanços mais sensíveis se deram
na América Latina. Infelizmente, o Brasil se manteve na posição da
“vanguarda do atraso” no enfrentamento desta questão estratégica.
O “Royal Charter” britânico
A
nova legislação britânica, assinada em outubro, cria um órgão regulador
para a mídia imprensa, estabelece um código de ética para os veículos e
fixa multas de até R$ 3,7 milhões para os crimes da imprensa. Ela se
soma à regulação já existente há décadas sobre as concessões públicas de
rádio e televisão. Os abusos da mídia britânica, principalmente do
império Murdoch – o maior do planeta – resultaram num fato inédito. A
nova lei foi elaborada pelo governo conservador de David Cameron, obteve
o apoio da oposição trabalhista e foi assinada pela Rainha Elizabeth.
Os monopólios do setor fizeram de tudo para sabotar a nova lei.
Ingressaram na Justiça, pressionaram parlamentares e até atacaram a
“sagrada” monarquia britânica. A pressão, porém, não evitou que a rainha
ratificasse a “Royal Charter”, a carta real sobre a mídia imprensa. Os
poderes públicos se viram pressionados pela sociedade, que não engoliu
os crimes praticados pelo jornal “News of the Word”, do empresário
australiano Rupert Murdoch. O tabloide, que subornou e grampeou
telefones ilegalmente, inclusive foi fechado e seus diretores podem ir
para a cadeia.
Pela lei aprovada, o novo órgão regulador poderá
aplicar multas de até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de
impor correções e pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas
com o mesmo destaque dado pelas matérias caluniosas. Ele será composto
por integrantes indicados de forma independente, sendo vedada a
participação de editores dos veículos privados. Já o código de ética
exige “respeito pela privacidade onde não houver suficiente
justificativa de interesse público”. Qualquer pessoa que alegar ter sido
atingida por reportagens poderá acionar o órgão.
A defesa do pluralismo na Europa
As
derrotas dos barões da mídia não se deram apenas no Reino Unido. Em
vários países tão badalados como expressão da “democracia liberal”
também ocorreram importantes revezes em 2013. Outro destaque do ano,
simplesmente ocultado pela imprensa brasileira, foi a aprovação do
relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia
europeia”, em janeiro do ano passado. O documento foi elaborado por um
grupo de alto nível (HLG) constituído no âmbito da União Europeia e faz
trinta recomendações sobre a regulação democrática da mídia.
Entre outros pontos, o relatório realça que “o conceito de liberdade de
mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão,
mas não é idêntico a ela. A última está entronizada nos valores e
direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm direito à liberdade de
expressão... Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da
propriedade... Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso
dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo
a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder
dominante”.
Para o desespero dos barões da mídia, o documento
propõe a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas
escolas secundárias; o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por
parte de organismo oficial; a total neutralidade de rede na internet; a
provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa
que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo; a
existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis
por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações
indevidas.
“Todos os países da União Europeia deveriam ter
conselho de mídia independente, cujos membros tenham origem política e
cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses
organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas
também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus
códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade... Os
conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como imposição de
multas, determinar a publicação de justificativas e cassação do status
jornalístico”, afirma o relatório.
Espionagem e atritos nos EUA
Se
na Europa o debate sobre a regulação democrática da mídia produziu
alguma luz, na pretensa “pátria da democracia”, os EUA, ele só gerou
atritos e nada de concreto. Mesmo assim, o tema esteve na ordem do dia.
Durante vários meses, o presidente Barack Obama e os impérios midiáticos
se digladiaram. O governo acusou abertamente a rede Fox, do mesmo
Rupert Murdoch, de se transformar no braço político do Partido
Republicano e da sua corrente mais fascistoide, o Tea Party. Já os
veículos acusaram a Casa Branca de monitorar os seus repórteres e
promover retaliações.
Em junho passado, num fato inédito, as
corporações midiáticas chegaram a boicotar uma reunião com o secretário
de Justiça, Eric Holder. A crise decorreu das revelações de que o
governo espionava jornalistas. A agência de notícias Associated Press e a
TV Fox News tiveram telefonemas e e-mails de seus repórteres
monitorados pelo Departamento de Justiça, que investigava o vazamento de
informações consideradas confidenciais pelo governo. Diante do
escândalo, que desmistifica a “pátria da democracia”, Barack Obama
aceitou conter as medidas de monitoramento.
O armistício,
porém, não soluciona os crescentes atritos entre o governo dos EUA e as
poderosas corporações midiáticas. Estudos indicam que a concentração do
setor tem aumentado no país, reforçando assustadoramente o poder destes
impérios. Mais de 120 jornais faliram nos últimos anos e apenas os
grandes sobrevivem à avassaladora crise da mídia impressa. Já as
emissoras de televisão “atravessam intensa concentração nos EUA”,
segundo reportagem de Nelson de Sá, publicada em julho passado na Folha.
Através de aquisições e fusões, a mídia fica ainda mais monopolizada.
Nelson de Sá cita dois exemplos nos setores de TV a cabo e TV aberta.
“No primeiro, a Charter, controlada por John Malone, tenta comprar o
serviço da Time Warner. Negócios semelhantes estariam sendo discutidos
entre a Cablevisión e a Cox e, no âmbito das operadoras de TV por
satélite, entre a Dish e a DirecTV. No segundo setor, pequenos grupos de
emissoras abertas estão se consolidando em grupos maiores, como na
compra das 19 estações do Local TV pelo Tribune por US$ 2,7 bilhões”.
América Latina na vanguarda
Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela
regulação da mídia. A região conhece bem os estragos causados por uma
mídia concentrada e manipuladora. Os golpes e ditaduras que
infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos de impressa. O
neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor.
Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas
neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido da Imprensa
Golpista (PIG)”. Nada mais natural, portanto, que a regulação se
tornasse uma exigência democrática.
Ley de Medios da Argentina
A
derrota mais sentida pelos barões da mídia no ano passado se deu na
Argentina. Em outubro, finalmente a Suprema Corte do país declarou a
constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram
contestados pelo Grupo Clarín, principal império midiático da nação
vizinha. Esta decisão histórica permitiu que o governo de Cristina
Kirchner prosseguisse com a aplicação integral da nova legislação,
considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de
desconcentração e democratização dos meios de comunicação.
Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo
definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de
“evitar a concentração da mídia”. O Grupo Clarín, maior holding
multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200
outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde
estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro
artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que
fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como
apelar.
Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e
sancionada por Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei
substitui o decreto-lei da ditadura militar. Seu processo de elaboração
envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos
sociais e empresários. Após a primeira versão, ela recebeu mais de
duzentas emendas parlamentares. No processo de debate que agitou a
Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a sua
aprovação. A passeata final em Buenos Aires contou com mais de 50 mil
participantes.
Mesmo assim, os barões da mídia tentaram
sabotá-la, apostando suas fichas na Suprema Corte da Argentina. Isto
explica porque a sentença de outubro abalou tanto os impérios midiáticos
da região, reunidos na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Num
discurso terrorista, eles afirmaram que a nova lei é autoritária. Mas
até o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das
Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, reconheceu que a Ley de Medios da
Argentina – com seus 166 artigos – é uma das mais avançadas do planeta e
visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não
se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos.
Equador e Uruguai dão exemplo
A
Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na região.
Outros dois países deram passos significativos neste sentido em 2013.
Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de Rafael
Correa que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para
sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que
definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no
país. O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi
aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra.
Além de
criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que terá o papel
de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei reserva 33%
das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal, 33% para
emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e comunitários. Ela
também garante amplo direito de resposta, contrapondo-se ao chamado
“linchamento midiático”. Caso julgue que pessoa física ou jurídica foi
“caluniada e desacreditada” pela mídia, a Superintendência pode obrigar o
veículo responsável a divulgar um ou mais pedidos de desculpas.
Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus
119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e
na garantia da verdadeira liberdade de expressão. “Como cidadãos,
queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição
e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de
informação com responsabilidade... Propusemos uma lei que se constrói a
partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de
privilegiados”. Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por
banqueiros!
Para irritar ainda mais os barões da mídia do
continente, em dezembro último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou
a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de
José Pepe Mujica. Com 183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os
meios de comunicação como um direito humano e define que “é dever do
Estado assegurar o acesso universal aos mesmos, contribuindo desta forma
com liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação,
promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento”.
Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de
comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e
a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”.
Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no
processo de concessão de autorizações e licenças para exerce a
titularidade” nas emissoras de rádio e televisão. Ela também prevê a
criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de
“implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”.
A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção
audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e
determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões
de rádio ou tevê. Ela também contempla a proteção à criança e ao
adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência
excessiva”. Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a
exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de
notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a
exposição dos menores.
A reação da máfia midiática da SIP
As
recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam as
que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a
encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua. Não é para menos
que o rebelde continente latino-americano é hoje o maior entrave ao
poder dos monopólios da mídia. Em outubro passado, durante a 69ª
Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), os
poderosos empresários do setor confessaram que estão perdendo a batalha
de ideias na América Latina e decidiram reforçar sua postura
oposicionista.
Na maior caradura, o presidente da SIP, Jaime
Mantilla, disse que "os governos latino-americanos têm se dedicado a
semear o ódio e o medo" contra os meios de comunicação. O objetivo da
entidade, sediada em Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre
apoiou os golpes e as ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam
aplicadas em sua plenitude e que contagiem outros países da região. O
Brasil inclusive foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia
do continente. Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles
podem dormir tranquilamente.
Em 2013, o debate sobre o poder ditatorial dos meios de comunicação e
sobre a urgência da regulação democrática da mídia ganhou impulso no
mundo inteiro. Até o Reino Unido, chocado com os escândalos de corrupção
e invasão de privacidade do império de Rupert Murdoch, aprovou uma dura
legislação. A Rainha Elizabeth 2ª se tornou, na visão dos barões da
mídia, a nova “chavista” do planeta. Os avanços mais sensíveis se deram
na América Latina. Infelizmente, o Brasil se manteve na posição da
“vanguarda do atraso” no enfrentamento desta questão estratégica.
O “Royal Charter” britânico
A
nova legislação britânica, assinada em outubro, cria um órgão regulador
para a mídia imprensa, estabelece um código de ética para os veículos e
fixa multas de até R$ 3,7 milhões para os crimes da imprensa. Ela se
soma à regulação já existente há décadas sobre as concessões públicas de
rádio e televisão. Os abusos da mídia britânica, principalmente do
império Murdoch – o maior do planeta – resultaram num fato inédito. A
nova lei foi elaborada pelo governo conservador de David Cameron, obteve
o apoio da oposição trabalhista e foi assinada pela Rainha Elizabeth.
Os monopólios do setor fizeram de tudo para sabotar a nova lei.
Ingressaram na Justiça, pressionaram parlamentares e até atacaram a
“sagrada” monarquia britânica. A pressão, porém, não evitou que a rainha
ratificasse a “Royal Charter”, a carta real sobre a mídia imprensa. Os
poderes públicos se viram pressionados pela sociedade, que não engoliu
os crimes praticados pelo jornal “News of the Word”, do empresário
australiano Rupert Murdoch. O tabloide, que subornou e grampeou
telefones ilegalmente, inclusive foi fechado e seus diretores podem ir
para a cadeia.
Pela lei aprovada, o novo órgão regulador poderá
aplicar multas de até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de
impor correções e pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas
com o mesmo destaque dado pelas matérias caluniosas. Ele será composto
por integrantes indicados de forma independente, sendo vedada a
participação de editores dos veículos privados. Já o código de ética
exige “respeito pela privacidade onde não houver suficiente
justificativa de interesse público”. Qualquer pessoa que alegar ter sido
atingida por reportagens poderá acionar o órgão.
A defesa do pluralismo na Europa
As
derrotas dos barões da mídia não se deram apenas no Reino Unido. Em
vários países tão badalados como expressão da “democracia liberal”
também ocorreram importantes revezes em 2013. Outro destaque do ano,
simplesmente ocultado pela imprensa brasileira, foi a aprovação do
relatório “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia
europeia”, em janeiro do ano passado. O documento foi elaborado por um
grupo de alto nível (HLG) constituído no âmbito da União Europeia e faz
trinta recomendações sobre a regulação democrática da mídia.
Entre outros pontos, o relatório realça que “o conceito de liberdade de
mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão,
mas não é idêntico a ela. A última está entronizada nos valores e
direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm direito à liberdade de
expressão... Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da
propriedade... Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso
dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo
a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder
dominante”.
Para o desespero dos barões da mídia, o documento
propõe a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas
escolas secundárias; o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por
parte de organismo oficial; a total neutralidade de rede na internet; a
provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa
que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo; a
existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis
por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações
indevidas.
“Todos os países da União Europeia deveriam ter
conselho de mídia independente, cujos membros tenham origem política e
cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses
organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas
também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus
códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade... Os
conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como imposição de
multas, determinar a publicação de justificativas e cassação do status
jornalístico”, afirma o relatório.
Espionagem e atritos nos EUA
Se
na Europa o debate sobre a regulação democrática da mídia produziu
alguma luz, na pretensa “pátria da democracia”, os EUA, ele só gerou
atritos e nada de concreto. Mesmo assim, o tema esteve na ordem do dia.
Durante vários meses, o presidente Barack Obama e os impérios midiáticos
se digladiaram. O governo acusou abertamente a rede Fox, do mesmo
Rupert Murdoch, de se transformar no braço político do Partido
Republicano e da sua corrente mais fascistoide, o Tea Party. Já os
veículos acusaram a Casa Branca de monitorar os seus repórteres e
promover retaliações.
Em junho passado, num fato inédito, as
corporações midiáticas chegaram a boicotar uma reunião com o secretário
de Justiça, Eric Holder. A crise decorreu das revelações de que o
governo espionava jornalistas. A agência de notícias Associated Press e a
TV Fox News tiveram telefonemas e e-mails de seus repórteres
monitorados pelo Departamento de Justiça, que investigava o vazamento de
informações consideradas confidenciais pelo governo. Diante do
escândalo, que desmistifica a “pátria da democracia”, Barack Obama
aceitou conter as medidas de monitoramento.
O armistício,
porém, não soluciona os crescentes atritos entre o governo dos EUA e as
poderosas corporações midiáticas. Estudos indicam que a concentração do
setor tem aumentado no país, reforçando assustadoramente o poder destes
impérios. Mais de 120 jornais faliram nos últimos anos e apenas os
grandes sobrevivem à avassaladora crise da mídia impressa. Já as
emissoras de televisão “atravessam intensa concentração nos EUA”,
segundo reportagem de Nelson de Sá, publicada em julho passado na Folha.
Através de aquisições e fusões, a mídia fica ainda mais monopolizada.
Nelson de Sá cita dois exemplos nos setores de TV a cabo e TV aberta.
“No primeiro, a Charter, controlada por John Malone, tenta comprar o
serviço da Time Warner. Negócios semelhantes estariam sendo discutidos
entre a Cablevisión e a Cox e, no âmbito das operadoras de TV por
satélite, entre a Dish e a DirecTV. No segundo setor, pequenos grupos de
emissoras abertas estão se consolidando em grupos maiores, como na
compra das 19 estações do Local TV pelo Tribune por US$ 2,7 bilhões”.
América Latina na vanguarda
Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela
regulação da mídia. A região conhece bem os estragos causados por uma
mídia concentrada e manipuladora. Os golpes e ditaduras que
infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos de impressa. O
neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor.
Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas
neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido da Imprensa
Golpista (PIG)”. Nada mais natural, portanto, que a regulação se
tornasse uma exigência democrática.
Ley de Medios da Argentina
A
derrota mais sentida pelos barões da mídia no ano passado se deu na
Argentina. Em outubro, finalmente a Suprema Corte do país declarou a
constitucionalidade de quatro artigos da “Ley de Medios” que eram
contestados pelo Grupo Clarín, principal império midiático da nação
vizinha. Esta decisão histórica permitiu que o governo de Cristina
Kirchner prosseguisse com a aplicação integral da nova legislação,
considerada uma das mais avançadas do mundo no processo de
desconcentração e democratização dos meios de comunicação.
Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo
definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de
“evitar a concentração da mídia”. O Grupo Clarín, maior holding
multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200
outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde
estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro
artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que
fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como
apelar.
Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e
sancionada por Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei
substitui o decreto-lei da ditadura militar. Seu processo de elaboração
envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos
sociais e empresários. Após a primeira versão, ela recebeu mais de
duzentas emendas parlamentares. No processo de debate que agitou a
Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a sua
aprovação. A passeata final em Buenos Aires contou com mais de 50 mil
participantes.
Mesmo assim, os barões da mídia tentaram
sabotá-la, apostando suas fichas na Suprema Corte da Argentina. Isto
explica porque a sentença de outubro abalou tanto os impérios midiáticos
da região, reunidos na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Num
discurso terrorista, eles afirmaram que a nova lei é autoritária. Mas
até o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das
Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, reconheceu que a Ley de Medios da
Argentina – com seus 166 artigos – é uma das mais avançadas do planeta e
visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não
se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos.
Equador e Uruguai dão exemplo
A
Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na região.
Outros dois países deram passos significativos neste sentido em 2013.
Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de Rafael
Correa que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para
sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que
definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no
país. O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi
aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra.
Além de
criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que terá o papel
de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei reserva 33%
das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal, 33% para
emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e comunitários. Ela
também garante amplo direito de resposta, contrapondo-se ao chamado
“linchamento midiático”. Caso julgue que pessoa física ou jurídica foi
“caluniada e desacreditada” pela mídia, a Superintendência pode obrigar o
veículo responsável a divulgar um ou mais pedidos de desculpas.
Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus
119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e
na garantia da verdadeira liberdade de expressão. “Como cidadãos,
queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição
e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de
informação com responsabilidade... Propusemos uma lei que se constrói a
partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de
privilegiados”. Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por
banqueiros!
Para irritar ainda mais os barões da mídia do
continente, em dezembro último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou
a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de
José Pepe Mujica. Com 183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os
meios de comunicação como um direito humano e define que “é dever do
Estado assegurar o acesso universal aos mesmos, contribuindo desta forma
com liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação,
promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento”.
Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de
comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e
a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”.
Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no
processo de concessão de autorizações e licenças para exerce a
titularidade” nas emissoras de rádio e televisão. Ela também prevê a
criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de
“implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”.
A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção
audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e
determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões
de rádio ou tevê. Ela também contempla a proteção à criança e ao
adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência
excessiva”. Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a
exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de
notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a
exposição dos menores.
A reação da máfia midiática da SIP
As
recentes mudanças legais na Argentina, Equador e Uruguai se somam as
que já estavam em vigor na Venezuela – o primeiro país da região a
encarar este tema estratégico –, Bolívia e Nicarágua. Não é para menos
que o rebelde continente latino-americano é hoje o maior entrave ao
poder dos monopólios da mídia. Em outubro passado, durante a 69ª
Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), os
poderosos empresários do setor confessaram que estão perdendo a batalha
de ideias na América Latina e decidiram reforçar sua postura
oposicionista.
Na maior caradura, o presidente da SIP, Jaime
Mantilla, disse que "os governos latino-americanos têm se dedicado a
semear o ódio e o medo" contra os meios de comunicação. O objetivo da
entidade, sediada em Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre
apoiou os golpes e as ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam
aplicadas em sua plenitude e que contagiem outros países da região. O
Brasil inclusive foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia
do continente. Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles
podem dormir tranquilamente.
* Artigo publicado na revista Princípios número 129 - fevereiro e março de 2014
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