domingo, 4 de dezembro de 2011

Um dia com o doutor Sócrates

Abalado com a notícia terrível da morte de um dos maiores jogadores brasileiros de todos os tempos, além de um ser humano de primeira grandeza, com convicções políticas libertárias, democráticas e socialistas, viajei com prazer no tempo para resgatar uma inesquecível reminiscência do passado : um dia inteiro de convivência com o doutor Sócrates, em  26 de junho de 2001.

Nessa época, eu, então assessor de imprensa da saudosa deputada Heloneida Studart, e o meu amigo Cláudio Jorge, o indefectível Repolho, também assessor da deputada, tivemos a ideia de conceder a Medalha Tiradentes (maior comenda do Legislativo fluminense) ao Sócrates. Heloneida logo se entusiamou com a proposta. Na sequência, coube a mim o primeiro contato com o doutor para fazer-lhe o convite. Encontrei, até para a minha surpresa, um homem reservado, tímido e discreto, a ponto de, em princípio, se esquivar, dizendo que não era muito chegado a homenagens, que não fazia jus à comenda, etc e tal. E não foi fácil convencê-lo. Precisei recorrer ao seu melhor amigo, o jornalista Juca Kfouri, que de imediato se propõs a entrar em campo para convecer o reticente amigo.

Alguns dias depois o Juca Kfouri liga para dar o sinal verde : "Pode marcar a data que ele já topou". Dito e feito. Na conversa seguinte, ainda meio retraído e inseguro é bem verdade, ele confirmou o sim à homenagem. Mas seu coração só começou a amolecer de vez quando lhe informamos sobre o script do evento e os convidados que já haviam confirmado presença. Ou seja, depois da solenidade formal da entrega da medalha, no plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, estava programada uma roda de samba num botequim da Rua do Ouvidor, reservado por nós, exclusivamente, para esse fim. Informamos também que já estava certo o comparecimento de vários craques contemporâneos seus nas quatro linhas, além de figuras influentes da crônica esportiva.

Logo no primeiro encontro, no Aeroporto  Santos Domunt, onde eu o Repolho fomos recebê-lo, percebemos o quão especial era o nosso homenageado, que irradiava simplicidade e inteligência. Durante o almoço, no Reustaurante Lamas, regado, naturalmente, a muito chope, dei uma de torcedor e fã. Sem constrangimentos, perguntei de tudo um pouco: a carreira como um todo, a democracia corintiana,  a passagem pela Fiorentina, sua possível candidatura à presidência da CBF, a habilidade inigualável com o calcanhar, a história de sua família e, especialmente, a derrota para a Itália, no estádio Sarriá, na Copa da Espanha, em 1982, que eliminou precocemente uma das seleções mais brilhantes já formadas pelo Brasil.

E o doutor não se fez de rogado, deitando falação sobre aquela fatídica tarde e enfatizando o clima de velório, de tristeza profunda que se instalou no vestiário canarinho após a inesperada derrota. Contudo, como o bom humor era uma das suas características mais palpáveis, contou uma passagem pitoresca :
"Caminhamos do vestiário até o ônibus num silêncio impressionante. Mal podíamos acreditar no que havia acontecido. Para o nosso azar, o ônibus dos italianos estava estacionado ao lado do nosso. E sabe como eles são esporrentos. A algazarra italiana doia ainda mais na alma da gente. De repente, o Juninho, aquele zagueiro que foi da Ponte Preta e do Corínthinas, se levantou, foi à frente do ônibus e tomou a palavra. Bem intencionado, querendo consolar os companheiros, saiu-se com esta : "Gente, nada disso aconteceu, nós não perdemos para a Itália por 3 x 2 e  estamos indo embora para a casa. Foi só um sonho. O jogo pra valer será amanhã. Não colou, evidentemente. Seu discurso foi recebido com indiferença e até com vaias."

A solenidade de entrega da Medalha Tiradentes  foi um sucesso. Lá estavam, entre outros boleiros, Zico, Leandro, Cláudio Adão, Deley, Nei Conceição e Afonsinho, a quem o doutor Sócrates prestou homenagem especial em seu discurso, imputando-lhe o mérito de ter sido o pioneiro das lutas dos jogadores de futebol por seus direitos. Outra passagem que diz bem sobre o caráter do nosso Magrão foi o "sequestro" sofrido pelo Zico por parte de um jornalista a serviço da Fifa.

Assim que terminou o evento de entrega da medalha, estávamos todos nos encaminhando para a roda de samba, a algumas quadras dali, quando demos por falta  do Zico. Rapidamente, o Sócrates ligou  pelo celular para o Galinho. A conversa foi mais ou menos assim : Sócrates : "Galo, onde está você? "; Zico : "Ué, estou a caminho do Aterro do Flamengo com o jornalista da Fifa que vai fazer umas fotos e uma matéria com nós dois lá no Aterro. Ele disse que você também está a caminho." Socrátes, visivelmente contrariado : "Galo, esse tal repórter da Fifa é uma mala. Ele me abordou para essa entrevista e eu disse não, pois tenho o compromisso da roda de samba e da cachaça com as caras da Heloneida. Manda esse cara se ferrar, dê meia volta e venha para a farra com a gente." Quinze minutos depois, Zico chegava à animada roda de samba, onde todos os craques já estavam reunidos. A batucada e a cerveja rolaram soltas até a hora de o Magrão correr para pegar a última ponte aérea.

Doutor Sócrates, como não tenho dotes de poeta para reverenciar seu futebol refinado e a liderança política e esportiva marcante aque você exerceu, me restou  o relato de um dia em sua companhia. Descanse em paz. Vai deixar muiitas saudades.

3 comentários:

  1. Bepara,
    Brilhante texto. Pessoal, simples e direto. Um primor, um toque de calcanhar nas palavras, com classe e genialidade ímpar.
    Parabéns pelo texto e um brinde ao Doutor.

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  2. Claudio Jorge repolho5 de dezembro de 2011 às 14:09

    Um dia para a história. Magnifico! Antes do ocorrido na madrugada de sábado, Já estava pensando em como o Brasil pode abrir mão de um sujeito como o Sócrates a frente da CBF, esse gesto só reforça a mediocridade dos nossos dirigentes do Futebol, que certamente, não estão a altura do talento dos nossos craques, que lamentávelmente a cada dia são mais alienados. Salve a genealidade do Dr! Dentro e fora das quatro linhas.

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  3. Camarada Bepara, quando cheguei na Helô e voce,Repolho e Alberto,Mauro Me contando esta história fiquei como sabes chateado por não fazer parte naquele momento da quadrilha cachaceira que se formou em 2002, onde conseguimos reeleger nossa Velhinha Maravilhosa e neste domingo, como Carioca da Gema torcendo pelo Rio, ao saber da morte do Doutor, Magrão,ou seja lá como for, lembrei de tudo que vcs contavam deste dia e o que ele era e o que representou aos amantes do bom futebol e com visão política próxima ao Doutor SOCRATES.
    VALEU CAMARADA, voce mais uma vez demonstra que és um JORNALISTA antenado com os acontecimentos e que tem uma escrita limpa e real.

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