Por Juliana Sada, publicada no blog Escrivinhador
Governo com apoio popular, oposição desacreditada e meios de comunicação perdendo a influência. São esses elementos que possibilitaram ao governo argentino de Cristina Kirchner avançar em questões espinhosas como a democratização dos meios de comunicações e o julgamento de militares envolvidos com a ditadura.A opinião é do senador Daniel Filmus, do Partido Justicialista, que foi ministro da Educação durante o governo de Néstor Kirchner.Em passagem pelo Brasil para participar do Ciclo de Debates sobre Direitos Humanos, Justiça e Memória, da Flacso, Filmus conversou com o Escrevinhador.Na entrevista, Filmus comentou as prioridades do novo mandato de Cristina, falou sobre as alianças na América Latina; e explicou como estão sendo os processos de julgamento de militares e de implantação da “ley de medios”.
Hoje você disse que a pauta dos direitos humanos não havia sido apropriada pelo conjunto da sociedade. Como que essa pauta avançou até chegar à condenação de muitos militares?
Eu acredito que há dois aspectos. Em primeiro lugar, a chama se manteve viva devido ao trabalho das avós, das mães, dos filhos e dos organismos de direitos humanos que tentavam colocar esse tema na agenda. Mas a minha opinião é que era um tema de minoria, não um assunto massivo. Inclusive, quando havia as manifestações – que acontecem todos os anos e marcam o aniversário da ditadura militar – se via que o núcleo era o mesmo e, em geral, de gente madura.
Outro aspecto é que Néstor Kirchner tomou esse tema como um assunto central. Na sua avaliação não se podia reconstruir uma sociedade, que se havia estragado não apenas pela ditadura mas também pelas políticas neoliberais, sem recuperar a memória. E ele avançou na direção de colocar o tema como central, inclusive enfrentando a resistência de muitos setores que, por medo ou cumplicidade, não queriam avançar nesta direção. Foi ele que realmente pôs o corpo para que este tema estivesse na agenda.
Há alguns dias Cristina Kirchner voltou ao assunto pedindo que se avançasse mais nos julgamentos. Porque como são justiças estaduais não se avança com a mesma rapidez em todos os lugares.
Durante o processo quais foram os principais problemas encontrados?
Depois do julgamento [na década de 80] das juntas, onde se prenderam as cúpulas dos governos militares, houve um retrocesso. Primeiro por duas leis, a lei de obediência devida e a lei de ponto final. A primeira só culpava as cúpulas, porque todos os outros obedeciam a ordens, mesmo que tivessem torturado e matado. A outra lei fixava uma data e o que não se havia julgado até o momento ficaria para trás. Outro retrocesso foi a lei do indulto, que permitiu que alguns que haviam sido condenados fossem perdoados.
Houve um retrocesso por conta dos próprios militares e por cumplicidade de muitos civis, de alguns setores que havia sido cúmplices na época da ditadura. Parecia que estava tudo perdido, que uma pessoa estaria condenada a andar pela rua e encontrar um genocida, um torturador em qualquer lugar.
Hoje em dia essa gente está sendo julgada. Não foi fácil porque a Justiça também resistiu a fazê-lo, foi necessário trabalhar muito e temos o orgulho de dizer que isso está sendo feito com as leis que temos, não há leis especiais, não há juízes especiais, a própria Justiça argentina, sem ter ditado nenhuma norma específica, está indo nessa direção.
E sobre a lei de telecomunicações, que parece ser uma briga muito maior, como foi aprová-la e agora implantá-la?
Bom, como você pode imaginar os próprios meios, que são monopólicos na Argentina e monopolizam também a fabricação de papel, se opuseram à lei de telecomunicações. Não foi só o partido oficial, senão muitas outras forças coincidiram que era necessário democratizar, ter pluralidade de vozes e de olhares e que era necessário desmonopolizar.
Outros setores não, alguns que historicamente concordavam que era necessário desmonopolizar preferiram estar do lado dos meios e a oposição foi muito forte. O governo nacional suportou em alguns casos 50 capas de diários seguidas contra ele, vindas dos jornais mais poderosos da Argentina e segue suportando. Mesmo com Cristina Kirchner sendo eleita com 54% dos votos, já no dia seguinte o título era negativo.
Há alguns aspectos da lei de telecomunicações em que se há avançado e outros que ainda falta avançar porque em alguns lugares os juízes acataram recursos apresentados pelos meios. Estamos discutindo na Justiça alguns aspectos, outros não, já avançaram: as universidades podem ter suas rádios e tevê; e a cada município se outorgou uma frequência FM. Estas são as coisas que avançaram e outras ainda estão pendentes porque a Justiça está retendo.
E onde o governo encontrou apoio para avançar nessas mudanças?
A particularidade deste governo é que recorreu fortemente ao apoio popular. Eu te dizia que nas mobilizações de aniversário da ditadura iam umas três mil pessoas, mas na última foram 200 mil pessoas e todos jovens, que não viveram o governo militar. Como aconteceu isso, como foi isso, porque os jovens se incorporaram tem a ver com o fato de que quem lidera não vai atrás do que diz a opinião publica e sim conduz a opinião pública, em certo sentido. Se não como pode diante de um ataque tão forte dos meios de comunicação, conseguir os 54%? Realmente, implica que as pessoas já não acreditam taxativamente no que dizem os meios de comunicação. Os meios têm uma influência muito maior nas grandes cidades. No meu caso, eu fui candidato à prefeitura de Buenos Aires e fiquei em segundo. Não conseguimos ganhar a cidade, onde a presença dos meios é muito maior que em outros locais do país.
Eu me lembro de ter conversado uma vez com Lula e que ele comentou que análises mostravam que uns 87% das notas nos jornais haviam sido contrárias a ele e ele ganhou as eleições. Então, creio que hoje já se produz um efeito inverso, as pessoas desacreditam dos meios. O resultado de tudo isso é que se desnudou a essência, de que não há meios independentes e que eles têm uma posição, que, nesse caso particular, é contra o governo.
E que diferenças há nesse novo governo da Cristina, em relação ao outro? Que mudanças há no cenário político?
O primeiro governo Kirchner ganhou com os 22% dos votos [no primeiro turno, em 2003] e Cristina Kirchner teve na primeira eleição 45% e agora 54%. Então, uma coisa que muda é que cresce o apoio e, por outro lado, há o descrédito da oposição. A segunda força teve 40 pontos a menos. Assim que há uma incapacidade da oposição em apresentar uma alternativa. E também muda que os meios estão desmascarados em sua verdadeira natureza, que não são independentes e tem uma posição de defesa das grandes corporações.
Há pouco eu fiz um artigo que dizia que no dia seguinte das eleições, em que Cristina teve os 54%, os meios seguiram com a mesma estratégia e a oposição teve a mesma estratégia: de não ver nada positivo no governo, não destacar nada e dizer que estava tudo mal. E as corporações tiveram a mesma estratégia, com uma corrida cambial para que o governo desvalorize e com isso que se deteriore o consumo popular.
Cristina outro dia falou de algo que chamamos de “sintonia fina”. Nós assumimos o governo em 2003 com 25% de desocupados e com duas de cada três crianças pobres. Já em 2007, se teve que fazer outra coisa, Néstor falava de sair do inferno, já tínhamos saído do inferno. A Argentina vinha crescendo, mas havia que consolidar o crescimento e avançar em leis que democratizassem a sociedade, como a lei de telecomunicações e a lei de casamento igualitário e também as políticas de dotação [orçamentária] universal por filho, na qual cada criança tem uma renda garantida, trabalhe ou não o chefe de família; de nacionalização dos fundos de aposentadoria e de grandes empresas como água, energia e as Aerolíneas Argentinas, que haviam sido privatizadas. É uma segunda geração de medidas de transformação e mudança, que tem a ver com igualdade e com a ampliação de direitos.
Agora, quando se fala em sintonia fina, não é o crescimento em geral, há que se estudar a questão de competitividade e produtividade área por área para ver qual setor necessita de atenção. Isto não se alcança somente com a acumulação de reservas, quando assumimos havia 12 bilhões de dólares e hoje temos 45 bilhões, mas reestruturamos e pagamos a dívida externa. Tínhamos uma dívida externa de um PIB e meio e agora é de 37% do PIB argentino.
A decisão de em que área atrair investimentos exige decisões sobre o uso de recursos. Como propôs a presidenta sobre toda a luz e gás, que estavam subsidiados para todos e por igual, agora vamos focar nos que menos têm. Vamos tomar medidas mais drásticas em torno de gerar igualdade e focalizar naqueles setores que ficaram mais atrasados. Isto gera inclusive uma discussão com certos setores dos trabalhadores que tiraram vantagens durante esse processo por estarem em segmentos muito mais modernos da economia.
O governo propõe a chamada sintonia fina que é, por exemplo, ampliamos muito da matrícula escolar mas não melhoramos tanto a qualidade do ensino; ampliamos muito a cobertura sanitária mas não melhoramos muito a qualidade do atendimento. Então, a esta altura faltam coisas muito mais finas.
Qual a importância das relações com o restante da América Latina para Argentina e com o Brasil?
Essa é uma das grandes mudanças que aconteceram a partir de 2003. São coisas que já se falavam na época da recuperação da democracia, estou falando de 1983. Começou com o Mercosul. Nós percorremos todo esse processo e o aprofundamos com outros governos que pensamos ser parecidos e que avançam na mesma direção.
Argentina fixou como uma prioridade o mercado interno, que é o nosso fator dinâmico, com 80% da produção voltada para o mercado interno. Outra prioridade é a integração latino-americana. E a partir daí nossa identidade com o mundo, nossa identidade é latino-americana. O papel que tiveram Lula e Kirchner quando decidiram não entrar na ALCA no encontro de Mar del Plata quando veio Bush em nosso país é o de propor uma prioridade distinta, que está posta na Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e na Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos, que se reuniu há algumas semanas, na Venezuela.
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