Ana, quando voltou a ser Lucía Topolansky, e
Ulpiano, quando voltou a chamar-se Pepe Mujica. Na foto, o recomeço,
quando vendiam flores no mercado de Montevidéu. |
Por Victor Farinelli, na Rede LatinAmérica
Primavera de 1973. Ela não se chamava Ana, mas era assim que todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida numa prisão militar feminina, construída especialmente para mulheres da guerrilha tupamara, em algum lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.
Primavera de 1973. Ela não se chamava Ana, mas era assim que todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida numa prisão militar feminina, construída especialmente para mulheres da guerrilha tupamara, em algum lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.
Em junho daquele ano, o fim do MLN-T (Movimento de Libertação Nacional, também conhecido como Tupamaros), foi um dos episódios que marcou o início da ditadura uruguaia, e levou centenas de jovens revolucionários à prisão, quinze deles como reféns de guerra. Ulpiano era um deles. Se os tupamaros ainda livres voltassem a atuar, ele seria fuzilado.
Um
torturador pontapeia as grades da cela, enquanto ri jocosamente e
relembra as últimas humilhações, de diferentes tipos, que a fez sofrer.
Ana continua a ler a carta. Ele insiste: "és a nossa preferida, bebê.
Vais ficar aqui milhares de anos".
A
raiva fá-la apertar o papel nas suas mãos até quase rasgá-lo: "olha,
daqui a doze anos eu vou sair daqui e viver a minha vida. Você viverá
com o fantasma dessas perversões, atormentando até ao dia da sua morte".
Enquanto
ele aumentava o volume das gargalhadas, Ana buscava algo onde escrever
uma resposta. Precisava contar a sua verdade, que o seu nome não era
Ana, que era filha de uma família de classe média de Pocitos, bairro
nobre de Montevidéu. Tinha uma irmã gémea, tinha uma família enorme,
sofria pelas saudades e pelo medo, mas não medo da morte, era o único
medo que não tinha, pois bastava-lhe a certeza de sair dali e para se
encontrar com ele.
(Lucía Topolansky)
Dias
depois, o seu advogado forneceu-lhe papel, caneta e a grande
coincidência das suas vidas. Ele era casado com a advogada de Ulpiano.
Os dois nada podiam fazer pelos dois guerrilheiros. Livrá-los da prisão
no meio a uma ditadura era impensável. Mas puderam ser um casal de
carteiros, trabalhando por um amor que lutava para sobreviver.
Dois
prisioneiros a viver um típico amor tupamaro. O MLN surgiu em meados
dos anos 60, fundado por um grupo de estudantes socialistas que queriam
fazer a revolução no Uruguai. Diferente das guerrilhas urbanas de outros
países, os tupamaros começaram a atuar antes de instalada a ditadura. A
vida na clandestinidade impedia que houvesse relações fora da
organização e não se podia saber o verdadeiro nome da pessoa amada. O
amor deles nasceu quando ela se chamava Ana e ele Ulpiano, e não
importava a verdade.
Amor
que nasceu com um passo para fora da prisão. Ela, uma estudante de
arquitetura com talento para a falsificação de documentos, fazia-lhe uma
identidade falsa, e assim se conheceram. Ana tinha um namorado que
também era do MLN, chamava-se Blanco Katrás, que meses depois seria
capturado junto com ela. Ana só passou alguns meses na cadeia, mas
Blanco seria executado pela polícia uruguaia. “Não era o primeiro
namorado que eu perdia naquelas condições, e naquela altura, já tinha
visto muitos outros companheiros morrerem. Não há tempo para sentir pena
quando é preciso salvar a própria pele”, pensava Ana, libertada em
1972, antes de encontrar refúgio na mesma taberna em que estava
escondido Ulpiano – na época, um dos homens mais procurados do país.
A
caça aos tupamaros no Uruguai passou a ser mais intensa nos anos 70,
com a ajuda dos Estados Unidos. Os tupamaros sequestraram e assassinaram
um agente do FBI, em agosto de 1970 (Dan Mitrione, que anos antes
esteve no Brasil, ensinando técnicas de tortura aos militares). Ulpiano
era acusado de fazer parte dessa operação – que é narrada pelo filme
“Estado de Sítio”, de Costa Gravas.
Ninguém
sabe se foi aí, no ocaso do movimento tupamaro, quando viviam de
taberna em taberna pelos bairros do centro velho de Montevidéu, que
começou a história de amor de Ana e Ulpiano. “Eles passaram a andar
juntos na época mais dura, quando nem sempre havia um teto. Às vezes,
era preciso dormir em pântanos fora do perímetro urbano da cidade.
Talvez a relação, digamos, física, não tenha começado nessa época, mas
com certeza o carinho mútuo sim”, relata Henry Engler, um ex-tupamaro,
amigo pessoal de Ulpiano.
O
pouco que se sabe sobre o começo da relação é que eles se tornaram
imprescindíveis um para o outro nesses últimos meses do MLN, antes do
fim definitivo da organização, em junho de 1973. Ambos foram presos. Ana
foi levada a uma prisão de mulheres. Ulpiano tornou-se refém, ficava
numa solitária, sob ameaça de morte se algum ex-companheiro voltasse a
atuar1.
Tentaram
trocar correspondências entre si para sobreviver, com a ajuda dos
advogados-carteiros. Ela se confessou, disse que se chamava Lucía, Lucía
Topolansky, e que sonhava em sair dali e encontrá-lo. Ele respondeu com
a sua própria revelação: “o meu nome é José Alberto Mujica”.
A
carta-desabafo de Pepe Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela carta de
amor de todos os tempos, segundo as companheiras de presídio de Lucía –
“era toda sentimentalona, como todas as coisas do Pepe”, segundo María
Elia Topolansky, irmã gémea de Lucía, também ex-tupamara. Passou por
todas as mãos e fez sucesso até entre os carcereiros – “naqueles anos,
cada carta que chegava era para todas”, conta Lucía, sobre a falta de
ciúmes com o bilhete.
(José Mujica)
Diz
a lenda que a ternura das palavras de Mujica amoleceu as restrições que
havia para correspondência entre presos, e assim eles puderam trocar
mais cartas que os demais casais tupamaros separados entre prisões.
Essa
situação durou exatamente os doze anos que Lucía deu de prazo ao seu
torturador, até que o seu amor renasceu como na primeira vez, com um
passo para fora da prisão. No dia 14 de março de 1985, ela e a irmã
gémea saíram da cadeira e foram para a enorme casa da família – no mesmo
dia em que Pepe foi libertado, depois de onze anos na solitária,
“conversando com os ratos e agarrado na esperança”, segundo ele mesmo.
“No dia seguinte, Lucía foi-se embora, foi morar com o Pepe, e nunca
mais voltou”, conta María Elia Topolansky.
Desde
então, vivem juntos numa quinta de um bairro de classe baixa, na
periferia de Montevidéu. Começaram por cultivar flores e vendê-las no
mercado municipal, mas sem esquecer os ideais políticos. Pepe
candidatou-se e foi eleito deputado em 1995. Em 2000, passou a ser
senador, e Lucía deputada. Em 2005, ela foi eleita senadora, e nesse
mesmo momento, trinta anos depois do começo da relação, vinte anos
depois de começarem a viver juntos, decidiram formalizar o matrimónio.
Cinco anos antes de Pepe assumir como presidente do Uruguai.
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A
melhor forma de mergulhar na história de amor de Pepe Mujica e Lucía
Topolansky, e também na história dos Tupamaros, é mergulhar na história
dela. Por isso os jornalistas e historiadores uruguaios Nelson Caula e Alberto Silva escreveram o livro “Ana, La Guerrillera”,
que traz detalhes de tudo o que se contou neste tópico e muito mais
episódios sobre a criação do MLN, a vida na clandestinidade e a disputa
política que levou o Uruguai à sua mais recente ditadura.
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