Por Dr. Rosinha e Marcelo Zero, especial para o Viomundo
A cobertura que a mídia brasileira tem feito da recente reestatização
da YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), maior empresa de
hidrocarbonetos da Argentina, está mais a serviço da Repsol e da Espanha
do que a serviço do leitor brasileiro, que merece informação acurada, e
que não brigue com os fatos.Para confirmar essa avaliação, basta ler alguns editoriais,
reportagens ou acompanhar o noticiário de rádio e TV no Brasil. De uma
maneira geral, os meios de comunicação classificam a decisão do governo
argentino de “injustificada”, “irracional”, “populista”, “ideológica”,
“demagógica” e outros adjetivos menos elevados.
Alguns “analistas” afirmam que a Argentina tem uma “capacidade
ilimitada de errar”, e que a medida levará o país vizinho ao isolamento
político e econômico. Outros dizem também que a decisão de Cristina
Kirchner prejudicará toda a região, afugentará novos investimentos e
poderá atingir os interesses da Petrobras na Argentina.
Não raras vezes a cobertura é acompanhada pelo preconceito existente
no Brasil, em relação à Argentina e aos argentinos, retratados como
seres irracionais, sujeitos a arroubos passionais e irresponsáveis.
Ao contrário, porém, do que dão a entender as notícias veiculadas no
Brasil, a população da Argentina recebeu bem o ato de reestatização e
apoia a decisão. No domingo (22/4), o jornal “La Nación”, que
não é de esquerda, divulgou uma pesquisa que mostra que 62% dos
argentinos apoiam a decisão de Cristina. Entre os entrevistados, 26%
afirmam estar “muito de acordo” e 36%, “de acordo” com a decisão.
Segundo a pesquisa divulgada, 23% disseram estar “em desacordo” e
somente 8% rejeitaram a medida.
Ora, a população argentina não é irracional. É, na média, mais bem
informada do que nossos “analistas”. Há, de fato, razões sólidas para
esse posicionamento.
A YPF foi privatizada em 1999 pelo governo neoliberal de Menem, que
levou o país à pior depressão econômica da sua história, desempregando e
empobrecendo milhões de argentinos. Agora, segundo o próprio “La Nación”, inclusive Menem concorda com a ação de Cristina Kirchner de reestatizar a companhia.
Assim como no Brasil do governo FHC, as privatizações na Argentina
foram, em sua maioria, muito mal feitas. Além dos questionamentos
relativos à lisura dos leilões e dos preços baixos que a venda do
patrimônio público atingiu, os resultados da maior parte das
privatizações foram custos muito altos para o consumidor e serviços de
baixa qualidade. Outra consequência destas privatizações: a perda de
controle sobre alguns setores estratégicos da economia e a falta de
investimentos necessários para ampliar e melhorar serviços importantes.
Este péssimo resultado geral fez com que os governos de Néstor e
Cristina Kirchner se vissem obrigados a intervir em alguns setores que
haviam sido privatizados como, por exemplo, Águas Argentinas, os Correios e a Aerolíneas Argentinas. Em todos esses setores, o quadro era de sucateamento, ausência de investimentos e serviços de baixa qualidade.
Portanto, a reestatização de 51% das ações da YPF se insere em um
quadro maior de tentativa de recuperação do controle da gestão
estratégica de setores econômicos relevantes e de melhoria dos serviços
prestados aos consumidores argentinos.
Na análise sobre a decisão argentina de intervir no setor de
hidrocarbonetos do país, deve-se levar em consideração, em primeiro
lugar, a grande dependência que o país tem, no que tange à produção de
gás e petróleo. Cerca de 83% da matriz energética da Argentina está
concentrada em hidrocarbonetos: 32% em petróleo e 51% em gás natural. No
curto e médio prazo, essa dependência não deverá se alterar, pois a
Argentina não tem grande potencial hidrelétrico a ser explorado e
tampouco programas robustos de exploração da biomassa, como o Brasil
possui.
Sob os auspícios da Repsol, entre 2008 e 2011, os argentinos viram a produção de petróleo cair 9%
e a de gás natural, 10%. Concomitantemente, as reservas provadas de
petróleo do país encolheram 4% e as de gás natural se reduziram em 19%,
no período de 2007 a 2010.
Considere-se, adicionalmente, que essas reduções na produção interna
vêm ocorrendo num quadro de significativo crescimento do PIB e da
demanda por energia. No período 2002-2010, o crescimento médio real do
PIB argentino foi de 8% e o incremento da demanda energética situou-se
em 5% ao ano.
Sem dúvida alguma, essa crescente demanda se contrapõe ao
estrangulamento energético que pode comprometer o desenvolvimento
sustentado da Argentina e enterrar os planos de reconstrução da sua
indústria doméstica, que havia sido muito fragilizada por décadas de
liberalismo irresponsável.
O aumento da demanda e o estrangulamento da produção levaram à
necessidade da importação de energia (hidrocarboneto e gás), o que
acarretou um déficit expressivo (3,4 bilhões de dólares) na balança de
comércio exterior de energia da Argentina, em 2011.
Tudo isso foi consequência, em boa parte, da inação da Repsol na
Argentina. De fato, a Repsol não vinha investindo o suficiente para
fazer frente às necessidades do desenvolvimento da Argentina. Ela
preferiu remeter os lucros obtidos naquele país à sua matriz em crise.
Imaginem se, no Brasil, houvesse a “Petrobrax” sonhada pelos neoliberais
tupiniquins, e se tal empresa estivesse remetendo seus lucros para o
exterior ao invés de investi-los na prospecção de novas jazidas, como as
do pré-sal. Seria a mesma situação.
O objetivo do governo argentino ao reestatizar a YPF é, assim,
recuperar sua “soberania energética” e superar os atuais gargalos de seu
suprimento de energia, como o Brasil fez, com muito êxito. O
recém-descoberto potencial de produção da bacia de Vaca Muerta, uma enorme jazida de shale gas,
a terceira maior do mundo, uma espécie de pré-sal argentino, augura um
grande futuro para a YPF estatizada, ao contrário do que dizem os
“analistas” da mídia brasileira, desinformada e desinformadora.
Mas nem todos no Brasil compartilham da visão desinformada da velha
mídia. Um dos antigos defensores da redução do Estado e das
privatizações, Luiz Carlos Bresser Pereira reviu suas posições
anteriores e passou a ser um crítico daquilo que defendia.
Bresser Pereira, no artigo “A Argentina tem razão” (Folha de São
Paulo, 23/04/12), afirma que “não faz sentido deixar sob controle de
empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país
como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de
reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz
espanhola”.
De fato, deixar um setor estratégico sob controle de uma empresa
estrangeira que não investe no país só faz sentido para boa parte da
mídia brasileira.
O atual governo argentino tomou uma decisão perfeitamente racional e
razoável, ao contrário do que insinuam analistas da velha mídia. Esta
sim, manipuladora e desinformada, pratica uma espécie de populismo
midiático conservador.
Ao invés de informar, as empresas de mídia tentam deformar os fatos e
conformar a sociedade de acordo com os seus próprios interesses. Para
além de desinformar os cidadãos comuns, o populismo midiático busca
defender interesses de investidores privados que não têm compromisso com
o desenvolvimento de nossa região.
Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde
Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR).
Marcelo Zero, sociólogo, é assessor da bancada do PT no Senado Federal.
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